Por que a morte está se infantilizando – e nós com ela
Até bem pouco tempo atrás, os mortos pediam solenidade, e eram objeto de veneração. Mas até eles perderam a classe. Prova disso é que os túmulos estão sendo substituídos por discretas lápides em gramados que remetem a tudo menos cemitérios. Os vivos sentem horror crescente aos despojos humanos, e tratam de incinerá-los até convertê-los em cinzas, para espalhá-las em qualquer lugar que os mortos tenham amado. Não deixaram de ser lembrados, mas o são do modo mais asséptico possível. Até mesmo a alegria dos novos cemitérios se afigura excêntrica, pelo excesso de euforia, e de frivolidade. Que mundo, que tempo é este?
Um mundo e um tempo marcados pelo espetáculo total. O fato pode ser observado em dois exemplos. O primeiro é o cemitério do vilarejo romeno de Sapanta, na fronteira com a Ucrânia, conhecido como Cimitrul Vesel (“Cemitério Feliz” em romeno), virou atração turística por causa de seus túmulos multicoloridos, com lápides em formato de capelinhas que mostram os falecidos representados em suas atividades favoritas. Assim, um padeiro faz pão diante do forno, o moleiro mói grãos e a dona de casa prepara os pratos para o almoço – pela eternidade. Mais recentemente, apareceram os técnicos em informática e as mulheres atropeladas por carrões. Os epitáfios também são alegres. Em um deles, um ente querido escreveu sobre a cunhada: “Sob esta cruz pesada, jaz minha cunhada. Como tenho me comportado bem, espero que ela não volte do inferno.” E assim por diante. O curioso cemitério nasceu da mente de um artista, Stan Joan Patras (1908-1977). De 1935 até morrer, Patras pintou e esculpiu 800 tumbas. A dele está lá, mostrando o artista de chapéu e expressão ligeiramente irônica. Hoje ele é reconhecido como inovador. Seu discípulo, Dimitru Pop, mantém vivo o hábito.
O segundo exemplo repousa (o verbo pode soar de mau gosto, mas vá lá) nos túmulos das crianças agora são enfeitados com personagens dos desenhos de Walt Disney. Algumas lápides exibem o formato da cabeça de Branca de Neve e do Ursinho Puff. Basta passear em cemitérios ingleses para topar com o fenômeno. É o caso do cemitério da cidade de Essex, no Oeste da Inglaterra, repleto de túmulos infantis decorados com figuras da cultura popular. Passeando por ali, o escritor inglês Theodore Darlympole cunhar o termo “disneyficação da morte” em um artigo para a revista londrina The Spectator (“The disneyfication of death”, 12/02/2011). O conselho municipal de Essex solicitou que os adereços fossem retirados, mas o pedido não surtiu efeito. Os pais e parentes quebram a tradição de austeridade vitoriana que dominou os cemitérios ingleses e fazem questão de lembrar das crianças mortas como se eles fossem figurantes de alguma aventura da Disney, e continuam a enfeitar as tumbas com brinquedos e acessórios vendidos nas lojas, como miniaturas de Mickey e ursos de pelúcia. Darlympole chama a atenção para o espírito de competição entre as tumbas, uma querendo aparecer mais que a outra. Assim, quanto mais ursinhos e princesas um túmulo exibir, maior o seu prestígio.
Os cemitérios felizes ilustram como vivemos e deixamos de aceitar nossa finitude, transformando a morte em tabu. Em tempos idos, as pessoas conviviam com os mortos e se resignavam com o fim inevitável. Ainda que maquiassem os cadáveres para velá-los com menos repugnância, sepultavam-nos com respeito religioso. A função de visitar os túmulos era lembrar e sonhar com um reencontro, até porque acreditava-se na vida espiritual após a degradação do corpo. Os artistas românticos tentaram glamorizar e erotizar a morte. Mas em vão, pois a realidade derrubou qualquer exaltação idealista. Apesar do Romantismo, as pessoas continuaram a morrer em gerações sucessivas, inapelavelmente e sem uma ponta de glamour. Os projetos urbanísticos do século XX trataram de sanitizar o problema. Criaram parques fúnebres e até cemitérios verticais. Isso até que a visão de um cemitério se tornasse intolerável aos padrões do convívio civilizado. Não é surpresa que uma nova fase aconteça agora, neste instante em que o princípio de realidade dá lugar ao do prazer, e que a fantasia afoga a consciência.
A morte não tem nada a ver com os novos tempos. Ela não combina com a alta tecnologia. Daí nosso espanto com o fato de Steve Jobs, o inovador da Apple, ter morrido. Como pode? Vez por outra, topamos com um e-mail de um falecido e pensamos em dar uma resposta. Mas para onde? E o Facebook exorta a cutucar um amigo que já morreu. E cutucamos. Ninguém mais pode morrer de fato, porque seus traços continuam a assombrar o universo digital. As redes sociais criaram cemitérios virtuais, mas eles são desprovidos da consistência de um território fixo. Eles de fato não existem. Os mortos também não. Os cemitérios de terra e pedra, por seu turno, devem se tornar centros de ilusionismo, como os de Sapanta e Essex. Ao visitá-los, somos convidados não a relembrar, mas a esquecer os mortos e a passar momentos agradáveis na ausência de quem deve ser ignorado. Nesses cemitérios cômicos e inovadores, os visitantes viram crianças de novo. Num processo de regressão instantânea, não cultuamos mais os antepassados. Brincamos despreocupados. Se antes viver era aprender a morrer, como dizia Montaigne, agora os novos cemitérios ensinam a viver no completo desprezo em relação ao destino que aguarda a todos. Neles, viver é aprender a ignorar a morte. Os que mais aproveitam a festa são os fantasmas. Às gargalhadas, eles aguardam para dar boas-vindas ao próximo sócio do clube.
Fonte: Revista Época
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